DEIXAR IR

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Estava feliz, mesmo com os conflitos existenciais. Meu filho mais novo havia nascido, nos mudamos para outra cidade, lugar que estávamos adorando (apesar da distância da família e dos amigos) e começávamos a colocar a mudança em ordem. Só que de repente, em poucos minutos, sem prévio aviso, tudo virou de cabeça para baixo e eu nem sei dizer em qual momento exato, no meio de todo o caos, comecei a me sentir sozinha, jogada num canto sujo e escuro, sem vontade de nada além de cuidar dos meus filhos. Foi por eles que não parei, é por eles que continuo e que me coloco em pé, mesmo que cambaleando, quando sinto que estou escorrendo para dentro do buraco negro.

O dia tinha transcorrido normalmente: escola, almoço, praia, lição, janta....fui amamentar o pequeno, o mais velho assistindo desenho antes de dormir e o marido fazendo almoço para o dia seguinte. Não sei como e nem porque os planos mudaram; meu marido passou de companheiro para um corpo caído no chão - uma morte súbita, sem tempo de pedir socorro e de nós podermos entender. O bebê chorava, o cachorro rodeava a porta e o mais velho rezava ao meu lado, num misto de desespero e esperança. Enquanto eu tentava dar calor a todos, mesmo com um frio subindo a espinha, que gelava meu corpo e minhas ações....assistimos a vida ir.

Ambulância, autópsia, ligações, volta para nossa cidade, velório, enterro. Fim de 21 anos juntos, fim de 8 anos juntos, fim de 9 meses juntos.

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Adeus companheiro, protetor, professor, parceiro, pai, exemplo, ídolo, rei das broncas e do amor, fazer rir, fazer brigar...

E assim começa a chegar a sensação de que estou desprotegida, e não sei se por isso percebo com tanta intensidade os obstáculos ou se eles surgem porque atraio com meus sentimentos. Se ele estivesse aqui, cuidaria de toda a parte emocional, ficando para mim só o operacional. Ao lado dele não nos preocupávamos com nada.
Ficamos por 2 meses na casa de familiares, esperando a resolução de alguns embates para podermos voltar a nossa casa. Recebemos a mudança vinda de quase 3 mil km de distância. Eram caixas e mais caixas, uma casa inteira, além de carro e moto, um bebê para amamentar a cada 2 hs e um filho maior para cuidar. Tive a ajuda mega valiosa de minha mãe, mas ainda assim me sentia sozinha.

Arrumação, comida, amamentação, escola, burocracia para resolver e ROUBO...a empresa de mudança roubou diversos objetos nossos e eu só conseguia pensar em como alguém pode ser tão desumano. Você pode estar se rastejando no chão, sempre haverá alguém para pisar, cuspir e chutar.

Resolver burocracias, procurar emprego, arrumar a casa, fazer comida, amamentar, brincar, escola, lição, broncas, carinho, passear, ESTELIONATO...viúva, com dois filhos sem pai, sem emprego, vítima de roubo, acrescentei à lista vítima de estelionato - foram diversos débitos em meu nome.

Resolver burocracias, trabalhar, arrumar a casa, fazer comida, amamentar, brincar, escola, lição, broncas, carinho, passear, mercado, médico, judô, ASSALTO....levaram nosso carro a mão armada, só deu tempo de tirar o pequeno da cadeirinha no banco de trás e abraçar o mais velho que já estava a salvo do outro lado da rua.

Terapia, centro espírita, terreiro de umbanda, amor da família e amigos, plantar bananeira, dormir de olho aberto e muita força para continuar nos momentos de baixa, quando meus filhos se tornam o meu único norte.

Brincar ou descansar? Trabalhar ou fazer comida? Ler ou passear? Trabalhar ou ir ao médico?
Medo, cansaço, dúvida, medo, cansaço, dúvida, medo até da própria sombra.

Processo, progresso até  a vida se encher de cor todos os dias e, então, eu deixar de sentir pena de mim mesma, deixar de me sentir num canto escuro e sujo, como uma sobrevivente de guerra, completamente anestesiada.

Comentários

  1. Deixar ir é tão difícil quanto necessário né?! A ação ou melhor, os verbos, que vêm depois "cuidar" e "fazer" exigem tanto quanto também nos ensinam e transformam. Reconhecer esse novo ser, tempo e novo estado das coisas e das lutas é olhar para a nova jornada que levará a novas emoções e caminhos inimagináveis. Sucesso!

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  2. Obrigada, Clau! É mais difícil saber o que fazer com o sentir do que sentir as emoções. Bjs

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